Aqui estou, ó Deus, para entender que crime cometi contra
Vós.
Mas, se nasci, eu já entendi o crime que cometi.
Aí está motivo suficiente para Vossa justiça, Vosso rigor,
pois o crime maior do homem é ter nascido.
Para apurar meus cuidados, só queria saber que outros crimes
cometi contra Vós além do crime de nascer. Não nasceram outros também?
Pois, se os outros nasceram, que privilégio tiveram que eu
jamais gozei?
Nasce uma ave, e, embelezada por seus ricos enfeites não
passa de flor de plumas, ramalhete alado, quando veloz cortando salões aéreos,
recusa piedade ao ninho que abandona em paz. E eu, tenho mais instinto, tenho
menos liberdade?
Nasce uma fera, e, com a pele respingada de belas manchas,
que lembram estrelas. Logo, atrevida e feroz, a necessidade humana lhe ensina a
crueldade, monstro de seu labirinto. E eu, tendo mais alma, tenho menos
liberdade?
Nasce um peixe, abordo de ovas e lodo, e, feito um barco de
escamas sobre as ondas, ele gira, gira por toda a parte, exibindo a imensa
habilidade que lhe dá um coração frio; e eu, tendo mais escolha, tendo menos
liberdade?
Nasce um riacho, serpente prateada, que dentre flores surge
de repente e de repente, entre flores se esconde, onde músico celebra a piedade
das flores que lhe dão um campo aberto à sua fuga. E eu, tendo mais vida, tenho
menos liberdade?
Assim, assim chegando a esta paixão, um vulcão qual o Etna
quisera arrancar de perto pedaços do coração.
Que lei, justiça ou razão pôde recusar aos homens privilégio
tão suave, exceção tão única que Deus deu a um cristal, a um peixe, a uma fera
e a uma ave?"
Texto de Pedro Calderón de La Barca (1600 - 1681),
dramaturgo espanhol.